
O Cachecol...
O céu de Ícaro tem mais poesia que o de Galileu.
Mas é a realidade que temos para viver.
Desde muito jovem gostava de tricotar, crochetar e outros trabalhos manuais que nem sequer estavam na moda. Fizera “ursinhos” para os filhos e para os netos que hoje só queriam vestir calças jeans e camisetas horrivelmente descompostas. Em sua opinião, de forma alguma na deles, é a “onda, vovó”, diziam rindo um pouco e ela sentia que riam dela.
Fizera tudo com prazer enquanto assistia alguma novela que a fazia sonhar com os sonhos que a vida se encarregara de provar que eram bons para novelas. Não fazia mal. Na frente da tela podia fazer de conta que ela tinha vivido daquela forma e o bandido nunca era o homem amado.
Quando o marido morreu há dois anos, sentiu uma falta desesperadora, seu mundo tinha ido embora com ele. Agora era tudo cinzento e igual. O tricô não dava mais prazer e se limitava a fazer cachecóis com os quais presenteava desde o quitandeiro até o neto mais velho. Era um amor de vovó, diziam eles e ela sorria meio desmilinguida.
O tricô preenchia as longas tardes silenciosas, logo teria que ir morar com um filho, sabia que faziam arranjos para isso sem ao menos consulta-la. Sacudia os ombros, aos 81 anos, não parecia fazer diferença para onde fosse e morar sozinha estava se tornando difícil.
Era uma tarde especialmente tristonha com a chuva miúda batendo na janela há dois dias e enregelando os ossos. Mesmo para quem ama o frio e mora no último estado do país, a umidade incomodava.
Sem se dar conta as lágrimas começavam a pingar em cada ponto que tecia, e começou a ver neles todos os fatos de sua vida: os bons e os ruins que hoje nem pareciam tão ruins. Apenas fatos que traziam mudanças, mais nada e para alegria de seu coração, todos correspondiam a uma emoção.
Não podia se queixar de nada, mas queixava-se para a tábua de carne, o espinafre cozinhando e o leite que agora esquentava facilmente no micro ondas tão rápido que a queixa encurtava. Eram seus confidentes.
Não incomodaria os filhos com uma ladainha de reclamações que ela mesma rezingara contra a mãe quando a ouvia de forma impaciente.
O tricô começou a encharcar e Matilde não se incomodou, de qualquer modo o lavaria e perfumaria para entregar ao futuro dono. Resolveu, entre as lágrimas que já pareciam gotas de sangue de tanto que doíam, contar com quantos pontos se faz um cachecol.
No final da tarde tinha tecido mil e cinquenta pontos. Subitamente as lágrimas estancaram. Tanto assim? – Questionou-se. Como cada um era uma vivência sua vida tinha sido extremamente rica, não estava em jogo o que os outros achavam sobre isso.
Para ela eram mais de mil experiências em um só cachecol e sabia que muita coisa, por considerar de menor importância, não fora tricotada.
Mil e tantos pontos e ainda nem chegara ao casamento! A idade lhe trouxera isso de bom: uma lembrança cristalina. Podia ouvir o barulho dos talheres na longa mesa de sua infância e rever os numerosos irmãos um a um.
Estavam longe, quase não os via, mas o coração se encheu de amor até mesmo pelas pirraças com que a incomodavam. Só agora podia entender que eram formas de meninos amarem a única irmã.
Levantou-se e procurou a caixa de lembranças. Estava cheia de flores secas que ganhara do namorado, posterior marido.
Em sua época era um só para sempre, mas até mesmo nesse tempo eles dançaram ao luar e se beijaram tentando se esconder do pai cioso.
Ai, que friozinho bom na barriga que dava! Que emoção galopante.
Depois vieram tantas fotos que já eram três caixas. Cada uma com sua própria história. Nem parecia uma só vida já que cabiam tantas ali e ela, de esguelho, vivera de todas um pouco.
O passo não era mais agitado como costumava ser e os lindos olhos não se abriam surpresos. No fundo do que reclamava? Suspirou diante da realidade: se não tivesse vivido tanto tempo e pago o preço que a vida cobra, como poderia ter acompanhado tanta coisa?
Filhos, lindos de pequeno, mas que jamais lhe passara pela cabeça retê-los numa infância sem fim. Queria-os homens e mulheres dignos que neles desabrocharam, graças ao tempo. Os netos já crescidos, tão diferentes da juventude dela, felizmente não pararam no tempo.
O passo mais lento lhe permitiria olhar com cuidado as flores e o mesmo o movimento apressado do trânsito e, mais uma vez, arquivar uma nova experiência, desde que parasse de lamentar o tempo que nem sequer se detinha para consolá-la, mas caminhasse com ele. Descobrisse com ele o que antes não tinha tempo para fazer.
Não abandonaria o tricô, voltaria a tecer todos os dias de sua vida nele para que levasse o calor da vida que não deve ser desistida nunca.
_________ - Postado por: Vana Comissoli | -